Assim, a liturgia de hoje realça o sentido universal da obra de Cristo. Mas não se trata do universalismo abstrato, global e midiático de nosso mundo contemporâneo. A inserção de Jesus na humanidade, que contemplamos no domingo passado (na festa da Mãe de Deus), acontece num ponto bem concreto e modesto: um povoado que nem está no mapa dos magos! O ponto por onde passa a salvação não precisa ser grandioso. O humilde povoado visitado pelos magos representa a comunidade-testemunha, o contrário do reino do poderoso Herodes. Belém é centro do mundo, porém não para si mesma, e sim para quem procura a manifestação de Deus. Não sobre Roma nem sobre a Jerusalém de Herodes, mas sobre a Belém do presépio é que a estrela parou. Essa estrela não se importa com o poder humano. Deus manifesta-se no meio dos pobres, no Jesus pobre.
II. Comentários aos textos bíblicos
- I leitura: Is 60,1-6
Como foi recordado na 1ª leitura da noite de Natal, o profeta Isaías (9,1) anunciou nova luz para a Galileia, região despovoada pelas deportações praticadas pelos assírios em 732 a.C. Duzentos anos depois, o “Terceiro Isaías” retoma a imagem da luz. Aplica-a a Sião (Jerusalém) e ao povo de Judá, que acaba de voltar do exílio babilônico e está iniciando a reconstrução da cidade e do Templo (Is 60,1). Jerusalém, restaurada depois do exílio babilônico, é vista como o centro para o qual convergem as caravanas do mundo inteiro. O profeta anuncia a adoração universal em Jerusalém. Enquanto as nações estão cobertas de nuvens escuras, a luz do Senhor brilha sobre Jerusalém. Esqueçam-se a fadiga e o desânimo, pois Deus está perto. As nações devolvem a Jerusalém seus filhos e filhas que ainda vivem no estrangeiro, e estes oferecem suas riquezas ao Deus que realmente salva seu povo.
Quinhentos anos depois, os magos (sábios, astrólogos) vindos do Oriente darão um sentido pleno e definitivo ao texto de Isaías: a eles o Cristo aparece como “luz” cheia do mistério de Deus.
- Evangelho: Mt 2,1-12
O evangelho narra a chegada dos magos do Oriente que querem adorar o Messias recém-nascido, cujo astro eles viram brilhar sobre Jerusalém (cf. 1ª leitura). A chegada dos magos e sua volta constituem a moldura (inclusão) dessa narrativa, cujo centro é a estupefação de Herodes e de toda a cidade por causa da notícia que os magos trazem. O ponto alto é a busca, pelos escribas, de um texto que aponte para esse fato. O texto em questão é Miqueias 5,1: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá um chefe que vai ser o pastor de Israel, o meu povo”. Informado pelos escribas, Herodes encaminha os magos a adorar o recém-nascido em Belém e informá-lo para que ele também vá (Belém fica a oito quilômetros de Jerusalém). O narrador, entretanto, deixa prever a má-fé de Herodes, que planeja matar os meninos recém-nascidos da região, tema que será desenvolvido no próximo episódio de Mateus, igualmente construído em torno de uma citação do Antigo Testamento.
No novo povo de Deus, não importa ser judeu ou gentio, importa a fé. O Evangelho de Mateus termina na missão de evangelizar “todas as nações” (28,18-20), e desde o início os “magos” prefiguram essa missão universal. Os doutores de Jerusalém, ao contrário, sabiam, pelas Escrituras, onde devia nascer o Messias – em Belém, a poucos quilômetros de Jerusalém –, mas não tinham a estrela da fé para os conduzir.
- II leitura: Ef 3,2-3a.5-6
As promessas do Antigo Testamento dirigem-se ao povo de Israel. Deus, porém, vê as promessas feitas a Israel num horizonte bem mais amplo. Seu plano é universal e inclui todos os povos, judeus e gentios. Os antigos profetas já tinham certa visão disso, mas os judeus do ambiente de Paulo apóstolo não pareciam percebê-lo. Paulo mesmo havia aprendido com surpresa a revelação do grande mistério: também os gentios são chamados à paz messiânica. Essa revelação, ele a assume como sua missão pessoal, a fim de levar a boa-nova aos gentios.
III. Pistas para reflexão
A visão do Terceiro Isaías sobre a restauração do povo na luz de Deus que brilha sobre a Cidade Santa realiza-se no povo fundado por Jesus Cristo. Este é o “mistério”, o projeto escondido de Deus, o evangelho que Paulo levou a judeus e gentios.
Mateus, no evangelho, traduz a fé segundo a qual Jesus é o Messias universal numa narração que descreve a realização da profecia: astrólogos do Oriente veem brilhar sobre Belém, a cidade de Davi, a estrela do recém-nascido Messias, “rei dos judeus”. Querem adorá-lo e oferecer-lhe seus ricos presentes. Herodes, entretanto, com os doutores e os sacerdotes, não enxerga a estrela que brilha tão perto; é obcecado por seu próprio brilho e sede de poder. Os reis das nações pagãs chegam de longe para adorar o Menino, mas os chefes de Jerusalém tramam sua morte. As pessoas de boa vontade, aqueles que realmente buscam o Salvador, encontram-no em Jesus, mas os que só gostam de seu próprio poder têm medo de encontrá-lo.
Significativamente, o medo de Herodes, o Grande, levá-lo-á a matar todos os meninos de Belém. A estrela conduziu os magos a uma criança pobre, que não tinha nada de sensacional. Mas o rei Herodes, cioso de seu poder, pensa que Jesus será poderoso e, portanto, perigoso. Para eliminar esse “perigo”, o rei, que tinha matado seus próprios filhos e sua mulher Mariame, manda agora matar todos os meninos de Belém.
Por que se matam ou se deixam morrer crianças também hoje? Porque os poderosos absolutizam seu poder e não querem dar chances aos pequenos, nem sequer a de viver. Preferem sangrar o povo pela indústria do armamento, dos supérfluos, da fome…
Pobre e indefeso, Jesus é o “não poder”. Ele não se defende, não tem medo. Em redor dele se unem os que vêm de longe, simbolizados pelos magos. E estes, avisados em sonho, “voltam por outro caminho”. O caminho, na Bíblia, é o símbolo da opção de vida da pessoa (Sl 1). Os reis magos optaram por obedecer à advertência de Deus; optaram pelo Menino Salvador, contra Herodes e contra todos os que rejeitam o “menino”, matando vida inocente.
O nome oficial da festa dos Reis Magos, “Epifania”, significa manifestação ou revelação. Contemplamos o paradoxo da grandeza divina e da fragilidade da criança no menino Jesus. Pensamos nos milhões de crianças abandonadas nas ruas de nossas cidades, destinadas à droga, à prostituição. Outros milhões mortas pela fome, doença, guerra, aborto. Órgãos extraídos, fetos usados para produzir células que devem rejuvenescer velhos ricaços… Qual é o valor de uma criança?
Deus se manifesta ao mundo numa criança, e nós somos capazes de matá-la, em vez de reconhecer nela a luz de Deus. Por que Deus se manifestou numa criança? Por esquisitice, para nos enganar? Nada disso. Salvação significa ser libertados dos poderes tirânicos que nos escravizam para realizar a liberdade que nos permite amar. Pois para amar é preciso ser livre, agir de graça, não por obrigação nem por cálculo. Por isso, a salvação que vem de Deus não se apresenta como poder opressor, a exemplo do de Herodes. Apresenta-se como antipoder, como uma criança sem valor.
O pequenino de Belém é venerado como rei, mas, no fim do evangelho, esse “Rei” (Mt 25,34) julgará o universo, identificando-se com os mais pequeninos: “O que fizestes a um desses mais pequenos, que são meus irmãos, a mim o fizestes” (25,40). Quanta lógica em tudo isso!
Deus não precisa nos esmagar com seu poder para se manifestar. Para ser universal, prefere o pequeno, pois só quem vai até os pequenos e os últimos é realmente universal. Falta-nos a capacidade de reconhecer no frágil, naquele que o mundo procura excluir, o absoluto de nossa vida – Deus. Eis a lição que os reis magos nos ensinam.
O menino nascido em Belém atraiu os que viviam longe de Israel geograficamente. Mas a atração exercida por Jesus envolve também os social e religiosamente afastados, os pobres, os leprosos, os pecadores e pecadoras. Todos aqueles que, de alguma maneira, estão longe da religião estabelecida e acomodada recebem, em Jesus, um convite de Deus para se aproximar dele.
Quem seriam esses “longínquos” hoje? O povinho que fica no fundo da igreja ou que não vai à igreja porque não tem roupa decente. Graças a Deus estão surgindo, nos barracos das favelas, capelas bem semelhantes ao lugar onde Jesus nasceu e onde a roupa não causa problema. Há também os que se afastaram porque seu casamento despencou (muitas vezes se pode até questionar se ele foi realmente válido). Jesus se aproximou da samaritana, da pecadora, da adúltera… Será que para essas pessoas não brilha alguma estrela em Belém?
Será que, numa Igreja renovada, o menino Jesus poderá de novo brilhar para todos os que vêm de longe, os afastados, como sinal de salvação e libertação?
Pe. Johan Konings, sj